terça-feira, 20 de junho de 2006

Metáfora?

O Prof. Diogo Pires Aurélio escreve hoje esta crónica no DN, de seu título Estátua:

"Há no Rossio uma vaquinha, das muitas que para aí estão, tresmalhadas pela cidade, que tem a pele toda feita numa bandeira nacional e o pescoço inclinado para baixo. À primeira vista, dir-se-ia que ela andava a pastar. Mas não. A vaca está ali, há quase um mês, sempre no mesmo sítio, de focinho estendido e olhos vidrados numa bola de futebol. O tempo passa e ela não pensa noutra coisa.
Bem sei que é só uma estátua, uma obra de arte. Houvesse, aliás, a mais leve suspeita de que fosse arte figurativa, e haveria logo quem dissesse que o artista avacalhou a pátria, um pouco à maneira de Vinícius de Morais, que dizia, uns 40 anos atrás, "a Europa está-se avacalhando". Por muito menos do que isso, há por aí esquadras de polícia a recolher bandeiras e a prevenir o uso impróprio dos símbolos nacionais. Mas não acredito. Apesar de a vaca estar de costas para o D. Maria, o Município não ia autorizar uma coisa dessas. É mais provável que seja exactamente o inverso. Em vez de ser a nação a avacalhar-se, o que a estátua representa é uma vaca a ficar portuguesa.
Como qualquer um de nós, a vaquinha embrulhou-se na bandeira e, mentalmente, rumou à Alemanha, onde por estes dias se joga o destino da pátria. Deixou para trás as preocupações, concentrou-se no essencial e pôs-se ali, especada, a olhar para a bola. A seu lado está uma outra, toda preta e em-pertigada, como se fosse um daqueles miúras que dantes havia por toda a Espanha, no cimo dos montes, a fazer reclame a conhaques, ou um desses intelectuais para quem a pátria está perdida e a quem Scolari aponta como inimigos. Ela continua de verde e rubro no lombo e olho na bola.
Vitória após vitória da selecção, a vaca vai ficando mais alheada de tudo. Passam por ali, de vez em quando, umas manifestações, mas a ela tanto se lhe dá. Nem a crise da agricultura parece afectá-la grandemente. Pachorrenta, como convém à sua condição bovina, ouve as discussões apaixonadas dos populares e estranha o silêncio que desce à cidade, cada vez que há um jogo onde entra Portugal. Muda e queda, não se espere que ela solte o castiço muuu em que rumina qualquer vaca, embora haja fanáticos que asseguram tê-la ouvido, um destes fins de tarde, a mugir olé, olé. Daqui por uns dias, alguém vai ter de lhe explicar que já tudo acabou e é tempo de deixar a bola e voltar à vidinha. Chatice!"
Certeiro! Nem mais!

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