segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Que entrevista!

Ricardo Araújo Pereira ao jornal I.

"Ricardo Araújo Pereira não gosta muito de jornalistas. Não é um problema religioso. É, segundo ele, uma experiência prática. Parece que os jornalistas tendem a fazer as perguntas de cor, mas recitam-nas mal. Recordações dos tempos em que preenchia criativamente os oráculos das reportagens que fazia, talvez. De modo que optou por fazer as entrevistas à distância e com algum controlo das respostas publicadas. Esta teve as suas regras: uma bateria de perguntas, outra de respostas, segunda bateria de perguntas, mais respostas, perguntas finais e as respectivas respostas. Parafraseando o nobre Clausewitz, para RAP a entrevista é uma espécie de guerra por outros meios e o entrevistador um saco de pancada. Do sentido da vida aos malefícios da publicidade e à razão por que não vemos mais vezes os Gato Fedorento na televisão, nada escapou a esta entrevista. Esperamos que os sobreviventes se divirtam.
Na seminal “Antologia do Humor Português”, Ernesto Sampaio defende no prefácio a ideia de Freud de que o humor nos serve para ultrapassar a dor e a morte dando um sentido à vida. Exemplifica isso com a história de um condenado à morte que, perante o patíbulo, pensa com os seus botões: “Ora aqui está uma semana que começa bem.” Além das hienas somos os únicos animais que conseguem rir. O humor tem que ter algum sentido especial?
As hienas não riem, assim como os papagaios não falam. Aquilo é um arremedo de riso, não é riso a sério. Por muito que certos antropólogos aleguem ter descoberto certas manifestações parecidas com o riso em macacos e até em cães, acho que o homem é o único de quem se pode dizer com propriedade que se ri. Parece-me que isso se deve ao facto de também ser o único que sabe que vai morrer. Os animais não sabem, e por isso não se riem. E Deus – pelo menos o Deus da Bíblia – sabe que não morre, e também não se ri. Nós temos essa informaçãozinha, e convivemos com ela diariamente. Somos todos esse condenado à morte que se ri a caminho do cadafalso. É difícil imaginar um comportamento mais absurdo, não é? Há um verso do Philip Larkin que diz que a coragem não livra ninguém da sepultura. A morte não é diferente para os que a temem e para os que a enfrentam. Concordo. Mas a vida se calhar é diferente. Vive-se melhor sem medo, acho eu. Não quero com isto dizer que a capacidade de rir da morte seja uma grande vitória, repare. Na verdade, é muito pouco. Mas o certo é que a gente não tem mais nada.
Existe um humor tipicamente português? Das anedotas do Bocage ao texto de Alexandre O’Neill em que ele garante, na sua autobiografia, que é “moreno português”, “mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se do que neste soneto sobre si próprio diz”, tem alguma coisa que o distinga do resto do humor do planeta?
Uma vez o Alberto Pimenta disse que Portugal era igualzinho aos outros países. E o entrevistador perguntou: “Acha mesmo que é igual?” E ele: “Eu não disse que era igual. Disse que era igualzinho.” Parece-me uma definição magnífica, até porque não a compreendo totalmente, e julgo que se aplica ao humor português, se ele existir.
Há alguma coisa de universal no humor? Quando passados 30 anos nos rimos dos sketchs de como reconhecer um maçon ou as discussões das seitas na “Vida de Brian”, dos Monty Python, isso significa que somos iguais aos britânicos ou aquilo pode ser percebido por gente de todo o planeta?
Há coisas universais no humor, exactamente na mesma medida em que há coisas universais no ser humano. Muitas das histórias reunidas no Philogelos, que é a mais antiga colecção de piadas que se conhece, continuam a fazer-nos rir hoje. Sabe aquela do homem que diz: “O escravo que me vendeu ontem morreu.” Responde o vendedor: “Curioso, ele comigo nunca fez isso.” Lá está, hoje não há escravos mas há papagaios mortos. Mesmo aquelas em que nos faz falta uma referência equivalente às vezes têm graça. Como a do eunuco que contraiu duas hérnias no escroto. Essa era muito popular. Merecidamente, aliás.
Noutros tempos, O’Neill escrevia que “o medo vai ter tudo/quase tudo, e cada um por seu caminho/havemos todos de chegar/quase todos/a ratos. Sim, a ratos”. Somos de facto um povo de brandos costumes com a cultura do respeitinho incorporada no ADN?
Confesso que não sei que tipo de povo somos e tenho medo de generalizações. E de aranhas, também. Suportar 48 anos de ditadura não deve ser exactamente medicinal, e deixa marcas, mas se ficasse alguma coisa incorporada no ADN ainda hoje havia Estado Novo. Eu gosto do povo. Talvez mais do conceito de povo do que da sua demonstração concreta, que se aglomera em redor de acidentes rodoviários e insulta as camionetas que levam os arguidos a tribunal. Mas gosto.
Os surrealistas inventaram a figura dos cadáveres esquisitos para animar a lareira. Comente as seguintes frases:
“É possível rir do Memorando da troika ou estamos demasiado entretidos a tentar esquecê-lo?”
Como lhe disse há pouco, acho que é possível rir da morte. Do Memorando da troika já tenho dúvidas. Há um limite de tragédia a partir do qual o riso talvez seja desadequado. Mas houve eleições e uma maioria esmagadora de portugueses votou nos partidos que firmaram o acordo com a troika. Suponho que isso tenha graça. Uma graça amarga, mas tem graça.
“Gaspar tem muito mais graça que Teixeira dos Santos.”
Concordo. Gosto muito daquele estilo inspirado na Telescola. Vê-se que ele podia falar mais depressa, se quisesse, mas não o faz porque não confia na nossa capacidade para o entender. Receio que o trabalho que ele está a fazer possa ser desastroso para o país, mas os cavaquistas não gostam dele. Portanto alguma qualidade ele terá.
“Quem terá feito e o que significam aqueles maravilhoso pins com a bandeira nacional que usam Passos Coelho e os seus ministros?”
Os pins significam que o governo é mesmo muito patriota. É patriotismo consubstanciado em pins – que é a melhor forma de o consubstanciar, na medida em que consubstancia sem dar muito trabalho a quem o vai consubstanciando. E permite a Passos Coelho apoiar a governação na mesma base ideológica que sustenta a violência doméstica: “Eu bato-te mas é para teu bem.” Quanto à origem, parece-me evidente que foram feitos na China.
“Se a democracia funcionasse era proibida.”
Pois, e tal. Mas continuo a preferir uma democracia que funciona mal àqueles regimes que funcionam bem de mais.
“Tirando os oráculos da SIC Notícias, é mais fácil gozar com Arménio Carlos ou com o Carvalho da Silva?”
É mais interessante gozar com quem tem poder, e os sindicalistas têm pouco. Mas a resposta à sua pergunta é, sem dúvida nenhuma, Arménio Carlos.
Voltemos às perguntas. Há dez anos os Gato Fedorento apareceram no programa “Perfeito Anormal”. Até hoje, cresceram ou engordaram?
Pessoalmente, espero ter engordado. O meu projecto sempre foi o da engorda. A luta pela paz mundial já estava tomada pela Miss Universo, com muita pena minha.
Não acha que perderam pelo menos a vontade de fazer programas televisivos pelo caminho?
Nós nunca tivemos grande vontade de fazer programas televisivos. Não somos actores nem profissionais de televisão. Não temos contrato com nenhuma estação. Às vezes fazemos programas televisivos, quando nos apetece e enquanto isso nos diverte. Por vontade da SIC, o Gato Fedorento Esmiúça os Sufrágios teria continuado. Nós ficámos sinceramente agradecidos com o interesse deles, mas achámos que devíamos parar. Se tivéssemos aceitado, agora o estaria a perguntar-me se eu não achava que devia fazer uma pausa. Prefiro assim.
Luiz Pacheco dividia os amigos pelo dinheiro que lhe davam. Hoje a maior parte dos grandes comediantes ganham a vida a fazer publicidade. Isso tem implicações no humor que existe hoje em Portugal?
Confesso que não tinha dado por esse fenómeno. Do leque de grandes comediantes, quais são os que constituem essa maior parte que ganha a vida a fazer publicidade?
Os Gato Fedorento estão sempre a fazer publicidade. Acha que o facto de um grupo ganhar bastante dinheiro a fazer publicidade pode alterar a sua disposição para uma crítica mais radical à sociedade?
É uma pergunta muito específica, não é? O seu receio de que as pessoas alterem as suas opiniões relativamente à sociedade não se estende àqueles que ganham pouco dinheiro a fazer publicidade nem a quem ganha bastante dinheiro a fazer outra coisa qualquer. Só quem ganha bastante dinheiro a fazer publicidade parece atreito a alterações de disposição. No meu caso não posso ajudá- -lo, uma vez que um dos primeiros sketches que fiz foi convertido num anúncio para o Montepio Geral. Foi mesmo no princípio de tudo, ainda nos tempos da SIC Radical, e por isso não tive tempo para me aperceber de uma eventual alteração na minha índole. Talvez possamos encontrar a resposta no estrangeiro. George Carlin fez publicidade à Fuji, Woody Allen à Seibu e à Telecom Italia, Jerry Seinfeld à American Express e à Microsoft, Groucho Marx à DeSoto, Stephen Colbert ao banco FirsTier, John Cleese à American Express, à Compaq, à Schweppes, à Sony, à Magnavox, à Sainsburys, à Accurist, ao banco islandês Kaupþing e aos pretzels australianos Planters. Infelizmente, nunca ocorreu a ninguém perguntar-lhes se o facto de ganharem bastante dinheiro a fazer publicidade alterava a sua disposição. Não é incompetência dos jornalistas estrangeiros: o problema é que lá fora a actividade de fazer publicidade não é criminalizada moralmente.
Estamos num fundo do poço em termos de humor nacional inteligente – e quer o RAP quer os Gato praticamente desapareceram do espaço público (a não ser da publicidade). Esta altura não seria das mais próprias para um projecto a sério de humor? Estão a pensar nisso?
Não é a primeira vez que alguém na imprensa assinala o meu desaparecimento do espaço público. Compreende-se: todas as semanas escrevo uma crónica numa publicação regional chamada “Visão” e faço um programa, também semanal, numa obscura rádio pirata que se chama TSF. Não há-de o espaço público dar pela minha falta… Pelo que percebo, por “projecto a sério de humor” entende-se aqui um programa de televisão. Nesse caso, não estamos a pensar nisso.
Por que razão não estão a pensar fazer um programa de televisão?
Porque já fizemos vários, e a nossa vida não é só fazer programas de televisão. Há mais duas ou três coisas que nos interessam. E a televisão não foge.
Não acha que fazia falta um programa como o “Dailly Show” em Portugal? Alguma vez pensaram fazê-lo?
Não, tal nunca nos passou pela cabeça. E não sei se se pode dizer de um programa de televisão que faz falta. Às vezes fazem-me falta coisas como por exemplo uma esfregona. Um programa de televisão é mais raro.
Já pôs a hipótese de se autonomizar dos Gato Fedorento?
Não. Uma vez que sempre fomos autónomos uns dos outros, autonomizar-me dessa autonomia seria pleonástico.
Alguma vez a RTP ou a SIC lhe disseram que acalmasse um pouco o tom da sátira? Se sim, em que circunstâncias?
Nunca, nem num sítio nem no outro. Mas o director de programas era sempre o mesmo: Nuno Santos.
Parece que o país, e ainda mais os humoristas, se renderam ao Memorando da troika. Está de acordo? Vê alguma explicação para isso?
Mais uma vez, preciso de ajuda para decifrar o enunciado da pergunta. Em que medida é que os humoristas se “renderam” ao Memorando da troika “ainda mais” do que o país?
Se olhar com atenção, verá que os sindicalistas “façanhudos” estão a manifestar-se, os indignados acampam em praças e os Gato Fedorento estão na Meo. Concretizando, tendo vocês uma voz e uma imensa capacidade de fazer humor sobre aquilo que se está a passar, não parece que desistiram disso?
Peço desculpa, estava a olhar sem atenção. Não admira que me escapassem certas subtilezas sociológicas. Agora que, seguindo o seu conselho, olho com atenção, constato que de facto a sociedade portuguesa se divide em três grupos: os sindicalistas façanhudos, os indignados e os Gato Fedorento. Os primeiros manifestam-se, os segundos acampam e nós estamos repimpados no MEO, a trair o povo português em geral e a classe operária em particular. Sempre estive convencido de que a minha profissão consistia em fazer rir as pessoas. É a minha única ambição, e não é pequena. Fa- ço-o por duas razões estritamente egoístas: primeiro, porque me pagam; segundo, porque gosto de ver o que acontece a uma pessoa quando ela se ri. O que mais me interessa na actividade de fazer rir as pessoas não é o que eu lhes dou, é o que elas me dão a mim. Repare que continuo a não encontrar virtudes para contrapor à degradação moral que vai sugerindo. Pelo contrário, vou descobrindo mais falhas, e ocorre-me outra ainda: a ignorância. Eu não sabia que um humorista era obrigado a fazer humor político na televisão. Pensava que podia falar sobre o que lhe apetecesse, onde lhe apetecesse. Que, se eu quisesse falar de política na “Visão” e na TSF, podia fazê-lo, mas que também podia falar sobre outra coisa qualquer. E que, se não quisesse fazer televisão, também tinha essa liberdade. Percebo agora que a única comédia digna desse nome é o humor político televisivo. Tudo o resto é desistência e rendição. Faz falta uma vanguarda humorística que me oriente.
Além do malévolo jornalista que parece impor-vos que façam televisão e a revolução, negando à partida a conhecida canção do Gil Scott Heron de que a revolução não seria televisionada, a verdade é que se o projecto colectivo os Gato Fedorento não faz programas de televisão, também não faz imprensa, teatro, rádio e cassete pirata. Nos últimos três anos têm feito apenas publicidade. Nesse campo fizeram um anúncio genial para a Meo, um filme a gozar com os anúncios em forma de Lip Dub. Como vos surgiu a ideia de fazer esta obra notável?
O modelo da nossa participação nos anúncios alterou-se. A agência de publicidade da PT, a Partners, sempre escreveu os anúncios, como é normal. Mas o ano passado a Partners inventou esta espécie de série publicitária e pediu-nos que escrevêssemos o guião. Fizemos essa música de Natal que explicava detalhadamente às pessoas o modo como elas estavam a ser persuadidas a subscrever o MEO. Achámos que produzia um efeito bastante ridículo, porque ninguém diz: “Eu agora estou a seduzir-te imenso com este meu fabuloso encanto.” Ou talvez diga, mas não consegue nada com isso. Portanto, como anúncio, tinha tudo para fracassar. Mas o Luís Avelar, que além de ser o administrador da PT com o pelouro do marketing é um requintado apreciador de filosofia da linguagem, achou graça e aprovou. É óptimo, porque se correr mal a culpa é dele.
Os Gato Fedorento têm algum projecto em carteira?
Sim. Queremos salvar o país e a própria humanidade através do poder redentor das piadas. Estou a brincar consigo. Continuamos a não ser o Messias que procura. Há uma cena no “Stardust Memories” em que o Woody Allen pergunta a uns extraterrestres o que é que pode fazer de realmente importante pelo mundo. Eles respondem: “És um humorista, pá. Queres prestar um verdadeiro serviço à humanidade? Escreve piadas mais engraçadas.” O projecto é esse. Quando estiver pronto avisamos. É coisa para levar tempo."

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