A Ana Sá Lopes escreveu no DN um texto delicioso sobre "a vida antes do Google". E antes dos telemóveis. E da internet...
Já ninguém se lembra, não é?
"Quando o meu filho nasceu não havia telemóveis. Quer dizer, haver havia, mas quase ninguém tinha. Como ele nasceu durante uma "ponte", com metade da família em lugares incertos ou sem telefone fixo, quase ninguém soube no dia. [E isso foi importante? Nada. Hoje, para qualquer um de nós, o apagamento dos telemóveis durante um acontecimento destes tornar-se-ia uma catástrofe e alguém ficaria infeliz.].
A verdade é que vivíamos bem. Conseguíamos estar incontactáveis e bem. Hoje isso parece-me um absurdo. Como é que estávamos bem sem ninguém saber de nós? Como é que passávamos horas longe dos nossos filhos, às vezes sem telefones fixos à mão? E, pior, sem medos? E sem estar a presumir infidelidades? Acreditando piamente no livre arbítrio da vida, nas pessoas que se atrasam, no nada que é o que mais das vezes acontece? Como é que dávamos aos outros um agora facilmente alienável direito à autonomia (poder estar sozinho)?
Que coisa esquisita - agora ao escrever isto sinto-me uma espécie de neandertal do passado recente, como se tivesse havido uma linha contínua dos meus avós até mim, abruptamente quebrada pelo telemóvel, pelo google e pela Internet. Como se o mundo estivesse dividido entre o depois da electricidade e o antes da Internet. E como se, e isto é a pior das loucuras, houvesse nisso um qualquer rasto de virgindade. (No primeiro capítulo de A Morgadinha dos Canaviais, Henrique, o herói urbano-depressivo da época de Júlio Dinis, aloja-se na casa sem luz das tias minhotas, onde começa a redescobrir a felicidade. Estas conversas tecnonostálgicas aproximam-se um bocado desse moralismo reconfortante, eu sei.)
Por exemplo, durante algum tempo, alguns de nós resistimos ao telemóvel (António Barreto escreveu deliciosos manifestos furiosos). Eu também resisti e essa resistência, ainda hoje cultivada esporadicamente, parece hoje um arcaísmo irresponsável. E antes do google, como vivíamos antes do google? Telefonávamos mais (dos fixos) para "saber coisas" ou íamos aos centros de documentação? E antes do mail? Nos anos 60, um famoso jornalista de Lisboa já enviava, de casa, as suas peças para o Diário Popular - mas de pombo-correio. Havia vida antes do google. Uma vida remota, misteriosa."
Sem comentários:
Enviar um comentário