"Os livros são um amor pesado. Arrastam-se atrás de nós como fantasmas, mesmo antes de arrastarmos fisicamente com eles, de lugar para lugar. Os livros tornam-nos conservadores: naqueles momentos em que nos apetece mudar de casa, de país, de mundo, eles perfilam-se diante dos nossos olhos, solenes, um exército de capas rijas desafiando o nosso desejo de mobilidade. Revoltamo-nos: decidimos deixá-los para trás, oferecê-los, esquecê-los – mas eles não deixam. Porque quando passamos as mãos nas estantes, medindo forças com eles, há-de tombar-nos aos pés um livro que no chão, aberto, tem alguma coisa para nos dizer, alguma coisa que esquecêramos ou que agora subitamente descobrimos. Alguma coisa tão nossa que não reparámos nela. Um verso sublinhado, uma imagem, uma página que nos acelera o bater do coração e o galope do cérebro. Quantas vezes utilizámos os livros como refúgios do cérebro contra investidas do coração? Quantas vezes os usámos como trincheiras sentimentais contra as razões da vida? Quantas vidas vivemos dentro deles, por procuração? Quantos anos passámos escondidos nas esquinas daquelas páginas, à espera que delas saltasse a surpresa redentora que, de tanto esperarmos, se esfumou? Os livros são guardiões das nossas culpas: da muda acusação inscrita nas lombadas velhas e virgens dos que nunca lemos ao grito silencioso dos que se desmoronam nas nossas mãos, riscados, batidos, cheios de areia, manchas de café, marcas de lágrimas e até – nefando crime – sombras de tabaco. Por que gostamos tanto de alguns livros maus e nos negamos a conhecer tantos livros bons? Por que insistimos em levar até ao fim alguns livros que parecem recusar-nos? Por que mergulhamos em livros que sabemos que nos vão magoar? O que faremos às horas que perdemos a ler livros de que não recordámos uma frase? Poderemos ainda reencontrar aqueles que só depois de perdidos descobrimos que amávamos de verdade? Quantas vezes sacrificámos a escuta das nossas verdades à leitura das verdades de um livro? Quantas vezes nos enganámos nos livros, quantas vezes nos enganámos por fugirmos dos livros?
Decidimos então escolher – mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos – e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não exista – nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa – tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência – mas nós chamávamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras – e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons – à semelhança das nossas vidas.
Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos – cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima – como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituámos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante – e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias. Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles – embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. “Antes a experiência que a nostalgia”, disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros."
Inês Pedrosa, revista ÚNICA (Expresso) de 9 de Fevereiro de 2008.
Decidimos então escolher – mas os livros ensinaram-nos também a precariedade das escolhas e das decisões. Há uma época da vida em que descobrimos que aquilo a que chamámos escolhas fundamentais resultou de um conjunto de factores e circunstâncias que, afinal, não dominámos. Fomos arrastados na enxurrada, sobrevivendo a temporais diversos – e agora, no promontório a que damos o nome de maturidade (porque ganhámos nos livros o vício de dar nome a tudo, classificar, organizar, compreender, explicar) olhamos para as escolhas que esboçámos e abandonámos, e esforçamo-nos por recomeçar o desenho da nossa vida, numa página em branco. Mas aprendemos que o branco puro não exista – nem o negro, nem o amarelo, nem o azul ou o vermelho. Nenhuma cor é afinal absoluta como nós pensávamos, nesse tempo em que chamávamos razão ao instinto, paixão ao desejo, amor ao medo, originalidade à arrogância e ousadia à provocação. Ou vice-versa – tínhamos um feixe de certezas absolutas, e uma incapacidade atávica de escutar várias versões de uma mesma história. Talvez fosse apenas impaciência – mas nós chamávamos-lhe idealismo. Gostávamos tanto de livros que nos tornámos caçadores de palavras – e deixávamo-nos balear por elas, como se fossem canções. Agora olhamos para os livros como sinfonias, feitas de deambulações em torno de um tema recorrente, que se vai revelando em diferentes tons – à semelhança das nossas vidas.
Quando éramos jovens, sabíamos arrumar os livros. Agora não sabemos – cresceram, multiplicaram-se, por dentro e por fora. Sociologia ou Filosofia? História ou Economia? Quanto mais lemos, mais difícil se torna decidir. A Ficção nas estantes de cima – como se lêssemos um romance de cada vez; sempre pensámos que quando acabássemos de crescer seríamos menos sôfregos. Mas o que fazer aos romances que nos habituámos a reler como ensaios ou poemas, e que sentimos necessidade de folhear ao acaso, com uma saudade sensual, numa tarde de chuva?
Os inclassificáveis empilham-se pelos cantos da casa, à espera de uma hora iluminante – e os recém-chegados acabam por se misturar com eles. Ao fim de uma semana já não conseguimos encontrar nada, e odiamos os livros por atacado, bradamos contra eles, juramos livrar-nos deles. Depois folheamos um e dizemos: vamos escolher, separar, deixar para trás, mudar. Mas os livros agarram-nos, lambem-nos as mãos, atiram-se ao chão para que olhemos para eles, seduzem-nos através do cheiro, do toque, do pó das memórias. Encaixotamo-los, e mudamo-nos, de novo, com eles – embora saibamos que nunca teremos tempo para os ler todos, e que continuaremos a ser injustos com eles, a amá-los mal, a perdê-los, a maltratá-los, a emprestá-los e a arrependermo-nos. “Antes a experiência que a nostalgia”, disse-me certa vez uma amiga. Um bom conselho serve para tudo, até para arrumar bibliotecas e perder o medo do caos e o travo da culpa que assombra o amor dos livros."
Inês Pedrosa, revista ÚNICA (Expresso) de 9 de Fevereiro de 2008.
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