quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Daniel, o vagabundo-filósofo

Nestes últimos dias o Sol tem feito por brilhar vestido de Primavera. Alto, quente, convidando à esplanada e ao mar. O Inverno fugiu, envergonhado.

O Daniel, como frequentemente fazia, foi dar o seu passeio matinal. Nunca compreendera o motivo das pessoas preferirem dormir de manhã em vez de irem agarrar a manhã com os sentidos. A luz, a temperatura, a paisagem…. sempre se sentira atraído pelo nascer do dia. Pensava frequentemente que devia ser crime não aproveitar essa dádiva da natureza. Para os outros todas as manhãs eram iguais, como todos os dias. Para ele, cada manhã era diferente. De uma beleza rara. Não as podia perder enrolado em lençóis.

O passeio matinal daquele dia levou-o à beira-mar. Aquele poço imenso de água sempre o intrigara e maravilhara. Como funcionavam as marés? Nunca ficou convencido com a teoria lunar das marés. Se calhar, era melhor nunca entender, e deixar-se levar assim por aquele misterioso vaivém líquido. Por várias vezes já se surpreendera a trautear a canção infantil “Oito Anos” de Adriana Calcanhoto: “por que os ossos doem enquanto a gente dorme?, por que os dentes caem?, por onde os filhos saem? (…) por que as ruas enchem quando está chovendo?”… e ia-se perguntando coisas. Assim, a cada passo.

Naquela manhã tinha saído apenas com a companhia do iPod. Se ficasse cansado da natureza, iria para outra onda hertziana. Andava simplesmente a pé. E via outras pessoas que também gostavam da manhã. Nunca falavam. Já tinha encontrado ministros matinais. Mas também não os conhecia. Raramente falava com alguém. Nem com os miúdos que podiam atirar a bola de futebol contra si.

Pensando com os seus botões, a bola era como a sua vida, os seus sentimentos. Recebia pontapés anónimos e seguia rumo a nenhures. Tal como nunca soubera jogar à bola, também não sabia o que fazer com os seus sentimentos. Ora voavam, ora rastejavam. Sem destino definido. Era uma bola fora-de-jogo.

Pelas 11h00 subiu até ao estacionamento de terra batida fronteiro à praia, onde tinha deixado o seu Smart azul-escuro. Não precisava de carro para ir até à praia, mas era comodista. E auto-convencia-se com o argumento de que assim aproveitava mais a manhã.

Ao almoço foi almoçar à tasca mais próxima de casa. Não gostava de tascas, preferia o anonimato dos centros comerciais. Mas desta vez foi até à tasca do Sr. Eleutério. Um cubículo com 3 mesas e poucos metros quadrados. Comia um caldo verde – delicioso como em poucos sítios – e uma sande de panado. Enquanto saboreava o minúsculo almoço ia fazendo trocadilhos na cabeça, palavras cruzadas virtuais. O seu trocadilho preferido era brincar com o nome do pouco sorridente Sr. Eleutério: ”ele é o tédio”…

Voltou a casa e perdeu-se nas palavras amontoadas nas estantes em forma de livros. Página após página voou para lugares imaginários até adormecer…

Ao fim da tarde foi passear com o cão que não tinha. Ia ver o pôr-do-sol na praia da manhã, mas desviou-se para uma feira que tinha assentado arraiais perto do parque de estacionamento da praia.

Pelo caminho ia fazendo festas aos cãezinhos, e uma vez ou outra assustava os pombos. Divertia-se a assustar pombos. Quando um deixava cair alguma pena na sua incipiente calvície, imaginava ser uma mensagem dos anjos, que não sabia interpretar. Nem a leitura diária dos signos do Paulo Cardoso o ajudava a decifrar os mistérios do seu dia-a-dia. Seria ele de outro planeta? De algum ascendente desconhecido? Estes pensamentos levaram-no à entrada da garrida feira.

A feira era o contrário de si. Cor, luzes, vozes feitas de alegria, muita gente de sorriso na cara, montanhas russas anãs, carrinhos de choque agitados, coisas a subir e a descer… Perdeu-se naqueles labirintos, ora para a direita, ora para a esquerda. Via jovens sorridentes, famílias de filhos felizes, velhos saudosos, quiosques de churros e cachorros oleosos…

Quase no fim de um desses barulhentos corredores, estava uma banca de cores envelhecidas. Na parede, numa folha desgastada pelos anos e pelo tempo, escrita quase imperceptível, lá estava: “Banca dos beijos. APENAS 1€”. Daniel, o vagabundo-filósofo, olhou para a banca e ficou ali demorados minutos. Não via ninguém a entrar ou a sair. A banca não tinha uma luz a dizer “ocupada”. Ninguém quereria beijos? Ou teriam já todos recebido beijos suficientes? Ou, antes, haveria outra banca, no outro lado da cidade, com beijos mais baratos? Olhou para trás e sentou-se, discretamente, num banco a fingir ouvir o seu companheiro iPod. As pessoas continuavam a passar e ignoravam aquele recanto que o tinha surpreendido a ele.

Já ao anoitecer, e cansado de esperar, mas sem coragem de entrar na “banca dos beijos”, voltou a atravessar a feira em sentido inverso, com as cores, as famílias felizes, e os barulhos ao contrário, e saiu.

Vagabundos pensamentos, misturados com a banca dos beijos, invadiram os seus sonhos nessa noite.

Janeiro 2008

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