O editorial do Negócios, escrito pelo Pedro Santos Guerreiro:
"Não é um PEC. Não é um Plano de Austeridade. Não é sequer um programa de Governo. É uma mudança de regime. Portugal será novo mas nós, portugueses, somos os mesmos e não estamos todos preparados. Depois disto, seremos mais fortes. Até lá, perderão os mais fracos. Como numa guerra pela paz. Mas é uma oportunidade. E é a última.
Não é o regime económico que muda. É a sociedade, a cidadania, a organização do Estado, a forma como o sistema político o vê e lhe subjaz. Não é menos do que isso o que está em causa. Porque a troika não trouxe um programa de pagamento de dívidas. Trouxe uma revolução. Para Portugal, é uma revolução liberal. E quem vai fazê-la são instituições internacionais, assessoradas por consultores estrangeiros, financiadas por contribuintes de outros países. Teremos governo. Portugal é soberano. Mas o Governo será suserano.
O Estado não será apenas mais magro, será menos tentacular. É também por isso que este plano não é um programa de Governo. É um programa anti-Governo. É o contrário das políticas que têm governado Portugal nos últimos anos. Nem a reforma da Segurança Social passa sem acrescento.
As traves-mestras da velha política económica são dizimadas. Há uma razia nos subsídios às energias renováveis, nos incentivos à aquisição de casa própria, nas políticas agressivas de Obras Públicas, nas parcerias público-privadas. Porquê? Volte a ler a frase anterior e responda a si mesmo: a quem aproveitaram no passado essas políticas? Eu ajudo: às empresas do regime. À EDP, à Mota-Engil, à Brisa, à Galp, à Caixa, ao BES, ao BCP, ao BPI... Foram elas que receberam ou financiaram os projectos, que viram os riscos dos seus negócios serem cobertos pelos contribuintes ao abrigo das "políticas de modernização".
As empresas deixarão de ser de regime. O regime deixará de ter empresas. A TAP deixa de ser do Estado, a EDP e a Galp perdem essa mão visível, a PT perde a vergonhosa "golden share". E a Caixa, que nisso foi a pior de todas, vende seguros, vende actividade internacional, vende tudo o que não é banca e assim deixa de ser albergue de ex-ministros para passar a cumprir a função de ser um banco estatal e só um banco estatal.
É sobretudo para isto que serve a agressiva política de privatizações. Para que a ANA, a CP Carga, os CTT ou aquelas empresas deixem de ser pousios de ex-políticos com medo de "faces ocultas" e passem a ser terreno produtivo. Para que este seja um Estado sem ruis pedros nem armandos. Mas nada disso se faz sem uma lei da concorrência poderosa e reguladores fortes. E tem sido aí que as democracias liberais têm falhado. Começando pelo sistema financeiro.
A banca vai passar por um mau bocado, mas os depósitos dos seus clientes são ainda mais protegidos. Ainda vamos ver bancos terem prejuízos em Portugal (compensados com os lucros no estrangeiro) e também eles deixarão de ser os parceiros dos Governos nas empresas e nos projectos públicos. Porque também eles terão de vender as suas participações nas grandes empresas.
Os bancos não vão trabalhar nos próximos anos pela rentabilidade, mas pela solvabilidade. Pela sua própria salvação enquanto projectos de capitais privados e autónomos. Provavelmente precisarão de dinheiro dos contribuintes para aumentar o seu capital. Tanto que a troika se viu obrigada a deixar preto no branco que o Estado não pode ficar maioritário em nenhum desses bancos. A necessidade podia existir. Apesar de tudo, os bancos saem em condições protegidas no que toca à liquidez: o Banco Central Europeu continuará discretamente a apoiar. Ainda bem. Não é por eles, é pela economia: sem crédito, as empresas congelam. E a economia também.
Quem paga a factura? Sempre os mesmos. Uns mais que outros.
Os trabalhadores vão pagar muito, mas muito mais IRS, com os limites às deduções de saúde e de educação - e dessa enormidade que são as prestações do crédito à habitação.
Os funcionários públicos, depois de perderem salário, vêem-no congelado até 2013 e perdem em dois anos quase metade da ADSE. Custa-lhes perder, mas custa ainda mais aos outros pagar. Não é preconceito: a ADSE é , no fundo, um seguro de saúde dos funcionários públicos suportado também pelos privados.
Os reformados perdem na pensão e, muitos, verão as rendas subir.
Os consumidores vão pagar mais IVA. Terão chamadas de telemóveis mais baratas, mas a saúde, os comboios, o tabaco e o álcool, até as cartas serão mais caras. E a electricidade.
Nos próximos dois anos, a recessão vai ser muito severa. Haverá muito mais destruição de empresas e de empregos. E, esses sim, são as grandes vítimas deste plano: os desempregados. Porque terão subsídios muito menores e durante menos tempo. Porque muitos deles não têm qualificações para as novas necessidade laborais do País.
Tudo isto é para melhorar o crescimento potencial da economia portuguesa. Ou seja, para que depois de ser pior, seja melhor. Há reformas muito agressivas nas leis laborais, na mobilidade social, no arrendamento, na reabilitação urbana. Será Portugal neoliberal? Não, será um neoPortugal que, face aos nossos "standards", é liberal. Volta Compromisso Portugal, estás perdoado.
Este plano é a última oportunidade de Portugal se refundar. De não cair. De descolar da Grécia. Sim, de descolar da Grécia.
A Grécia está numa armadilha. Errou até eclodir a crise. Depois disso errou a troika. Os pobres dos cidadãos gregos não são bandidos, foram as cobaia da ajuda externa.
A possibilidade de a Grécia ter de reestruturar a sua dívida é grande, por mais que a Comissão Europeia diga que não. Tal, se acontecer, pode ser considerado uma violação de tratados europeus, por haver transferência fiscal entre Estados. E isso pode ter uma consequência: a expulsão da Zona Euro. Coitados dos gregos. E coitados de nós se, nessa possibilidade e altura, estivermos como eles. A nossa saída do euro é a entrada num túnel longo e negro de pobreza.
É por isso que esta é a nossa última oportunidade para evitar o estertor da saída do euro. Não basta aprovar o plano, é preciso cumpri-lo. E aí chegamos à política. Às eleições. Ao momento actual. Ao risco de que os egos pessoais dos líderes partidários se sobreponham à vontade e à necessidade nacional.
Este plano tem cabeça, troika e membros. Sim, é isto ou o caos. E sim, esta é uma oportunidade de ter um Estado moderno - e o Estado não são eles, somos nós. É o nosso exercício de cidadania que tem de mudar. De cada um de nós.
Este acordo só não tem uma coisa: uma mudança no sistema político, nas subvenções, no financiamento partidário, nos deputados, na Assembleia da República. E não tem porque não pode: Portugal é uma democracia. Curiosamente, poucas coisas precisam de mudar tanto como a política. E, como o FMI não pode, isso só depende de nós. Ainda bem. Façamo-lo. Ou outros farão por nós. Nós. Somos sempre nós."
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